Depois de arrebatar oito Kikitos no 47º
Festival de Cinema de Gramado, o filme “Pacarrete” de Allan Deberton foi
o escolhido para encerrar a programação do 29º Cine Ceará. Foi a
segunda exibição no Brasil e a primeira em solo cearense. O público
presente à exibição assistiu maravilhado ao desempenho da atriz
paraibana Marcélia Cartaxo, que interpreta a personagem título.
Inspirado em fatos reais, o
longa-metragem foi praticamente todo filmado no município de Russas,
onde a verdadeira Pacarrete – Maria Araújo Lima (1912-2005)- nasceu e se
criou. Coincidentemente, é a terra natal do diretor e da atriz Débora
Ingrid, que também atua no longa-metragem. Segundo Deberton, Pacarrete
era sua vizinha e ele tentou colocar na tela todas as lembranças da
época, do lugar, de quando ouviu falar dela pela primeira vez.
“Tornou-se um filme movido por uma locomotiva de sensações”, explica.
Sensações e emoções para ser mais
preciso. Já que o primeiro longa-metragem de Allan Deberton foca parte
da vida de uma mulher, que na juventude foi uma gabaritada professora de
ballet, em Fortaleza, mas que agora, na velhice, é tida como
louca pelos seus conterrâneos, por querer seguir com o sonho de
continuar dançando e levar a arte clássica para o povo. Além disso, ela
causa estranheza por inserir em suas conversas, várias palavras e
frases em francês- seu apelido “Pacarrete” é o equivalente francês para
“margarida”. Convivendo com a irmã Chiquinha (Zezita Matos) e contando
com a ajuda de Maria (Soia Lira), com quem tem atritos constantes, a
bailarina alterna momentos de devaneios com lucidez.
Os momentos em que se encontra absorta
em suas lembranças, reforça o desejo de Pacarrete em retornar aos palcos
e apresentar um solo de dança. A possibilidade surge quando a
secretária de cultura de Russas (Samya de Lavor) decide realizar uma
grande festa para comemorar os 200 anos da cidade. Pacarrete quer se
apresentar durante a festa, mas sofre resistência da secretária que não
valoriza sua arte.
Quem apoia suas ideias é o comerciante
Miguel (João Miguel) que tem um afeto especial pela bailarina. Esta por
sua vez, nutre uma paixão platônica por Miguel, que apesar de casado,
não se furta de ajudá-la nas horas mais difíceis. Pacarrete “é forte
como um mandacaru” e não desiste, apesar das adversidades que a vida lhe
reserva. Ao final, o longa-metragem deixa uma mensagem positiva para
aqueles que acreditam nos seus sonhos e resistem ao sistema conservador e
intolerante. Mais atual, impossível.
O cineasta Allan Deberton estreia muito
bem no seu primeiro longa-metragem. O primeiro ponto a ser elogiado é o
elenco. A escolha de Marcélia Cartaxo para viver a protagonista é mais
que acertada. Sua Pacarrete tem uma voz gutural e é meio ranzinza-
características que poderiam, facilmente, causar uma antipatia no
público-, no entanto, sua fragilidade e sua elegância nos gestos, sempre
vestida impecavelmente, causam um efeito inverso: o de automática
empatia do público. Para compor a personagem da forma como o diretor
imaginou no roteiro, Cartaxo teve aulas de piano, ballet e francês na fase de pré-produção. As coreografias ficaram a cargo de Fauller Freitas e Wilemara Barros.
Poucas semanas antes de começar as
filmagens, entrou em ação o preparador de elenco Christian Duurvoort que
trabalhou com Marcélia e os outros atores. Aliás, a experiente atriz
paraibana, com mais de 40 trabalhos audiovisuais realizados, só não está
em cena em alguns momentos em que é substituída pela sua dublê, a
bailarina Wilemara Barros. Fora isso, a câmera do fotógrafo Beto Martins
flagra toda a emoção da protagonista em seus mínimos detalhes (com
closes potentes) e explora de forma inteligente a relação de Pacarrete
com sua casa que funciona como um verdadeiro refúgio e com o mundo
exterior (seus passeios pela cidade, vestida com as criações inventivas
da figurinista Chris Arruda, são um espetáculo à parte).
Os atores coadjuvantes também estão no
mesmo diapasão da protagonista. De Débora Ingrid- que faz uma rápida
participação, como recepcionista da secretária de cultura- a João Miguel
(premiado com o Kikito de Ator Coadjuvante), de Zezita Matos a Soia
Lira (também vencedora do Kikito de Atriz Coadjuvante), todos estão
afinados com a proposta da história, equilibrando momentos mais
dramáticos com outros mais pitorescos.
O roteiro, assinado por Andrea Araújo,
Allan Deberton, Samuel Brasileiro e Natália Maia, consegue envolver
rapidamente o espectador não só pela rica construção da personagem, como
pela narrativa tragicômica na medida, que termina com uma sequência
sublime e bastante eficaz. A direção de arte de Rodrigo Frota merece
também destaque, pela minúcia das ambientações apresentadas e a
atmosfera memorialística criada a partir do mobiliário, e dos objetos
cênicos. A trilha sonora é um achado também. Além das composições
intimistas de Fred Silveira é possível também ouvir temas clássicos
internacionais cantados em francês e inglês. A cena embalada por Tina
Turner interpretando “We Don’t Need Another Hero” é antológica.
Produzido com pouco mais de R$ 1 milhão
de reais, “Pacarrete” só deve estrear no circuito comercial em março de
2020. Até lá, o filme de Allan Deberton será exibido em alguns festivais
nacionais e internacionais. Em tempos sombrios, onde o Governo Federal
tem como lema a destruição da ANCINE e a censura às artes, o cinema
brasileiro/nordestino responde com obras promissoras e revigorantes como
“Pacarrete”.
Fonte: bangalocult.com.br
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